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terça-feira, 1 de novembro de 2011

Pá-Pé-Pi-Pó-Ponte

Há 36 anos, em Portugal, uma escola ensina a desaprender e a desobedecer. Com esses dois princípios vem conseguindo vencer da apatia dos professores às dificuldades de ensino. Seu idealizador é um educador que se apresenta como Zé.Os educadores dos quatro costados ainda sonhavam com a Escola da Summerhill – aquela da liberdade sem medo – ou com a pedagogia de Paulo Freire quando ouviram dizer que havia um lugar onde tudo isso, e mais um pouco, virara verdade. Na Vila das Aves, no Porto, em Portugal, uma instituição jogada às traças, onde professores, não raro, levavam sovas dos alunos e iam parar no hospital, tinha conseguido o que muitos só haviam prometido.

Seu nome é Escola da Ponte. E sua história se divide entre antes e depois de 1976, ano em que um ex-eletricista miudinho e estrábico entrou em sala de aula para “domar” uma turma disposta a pôr tudo abaixo. O verbo pode não ser bem esse. Mas o que se sabe é que o tal homem – José Pacheco, hoje com 60 anos – não só ganhou a parada como arrastou outros profissionais de ensino para suas ideias.

A curiosidade sobre o que acontece lá leva muita gente a cruzar oceanos. Ou a responder “presente” nos inúmeros congressos que só merecem crédito se tiverem Pacheco na lista de convidados. “Me incomoda ter de tratar sempre da Ponte. Prefiro falar do Brasil”, provoca o educador. Há dez anos ele fez de Nova Lima, em Minas Gerais, seu endereço. Dali peregrina pelas divisas da antiga colônia fazendo pontes em mais de uma centena de escolas às quais assessora. “Em algumas escolas que conheço passou a reinar outra vez a música e a felicidade”, festeja.



Na quarta-feira passada, cerca de 2 mil educadores lotaram o Teatro Guaíra para conferir a fala de José Pacheco no Seminário Ler e Pensar, promovido pelo Instituto GRPCom. Para participar, o português impôs uma condição: não daria palestra. Prefere ser entrevistado. “Senão, digo sempre o que já sei dizer”, explica o convidado, cuja fala foi interrompida por uma plateia qual alunos no recreio. Fez barulho como bem quis – rindo e aplaudindo o “Zé da Ponte”.

Zé, poucos de nós cruzaram o oceano para conhecer a Escola da Ponte. Você poderia nos levar até lá pelas suas palavras?
Penso que hoje já não seja necessário atravessar o mar para ver a Escola da Ponte. No Brasil há muitas escolas onde se alcançou algo mais. Mas vou tentar. A Ponte é uma escola da rede pública. Há 36 anos não tinha vidros nas janelas, nem porta, nem banheiro. Muitos dos seus jovens não sabiam nem ler nem escrever. E havia alunos que batiam em professor...


Como no Brasil?
Não, isso é lá em Portugal [risos]... Um grupo de educadores se perguntou o que podia mudar. Traçou grandes metas, mas deu pequenos passos, porque criança não é cobaia. O que se fala da Ponte é o lado exótico – que não tem turma, não tem série, não tem prova, não tem horário, nota ou computador. E que é a melhor escola nas provas nacionais. Mas isso é o que menos importa.

O que deve ter acontecido por lá no dia de hoje [quarta-feira]?
Deixe-me ver: durante a manhã houve um encontro de professores tutores, depois a reunião de um grupo de responsabilidade. À tarde, as crianças foram fazer o que quiseram porque os professores se reúnem toda a tarde de quarta-feira. Talvez lá estejam a essa hora, porque até jantávamos na escola, tanto havia para conversar.


A Escola da Ponte é de fato diferente?
É diferente porque mostrou que os professores são capazes de se emancipar. Quando comecei a trabalhar, ainda estávamos na ditadura de Salazar e eu tinha um salário indigno. Precisava trabalhar numa escola de manhã, noutra à tarde, fazer à noite educação de adultos. Mas na Ponte nós não nos resignamos. Fizemos acontecer. Vejo movimento semelhante no Brasil. Para mudar é preciso pensar por sua cabeça e juntar-se com outros, porque ninguém se salva sozinho. A profissão de professor não é um ato solitário, é um ato solidário.


Se você fosse resumir em uma cena o que se deu na sua escola, qual seria?
Vamos para a educação por duas razões: por amor ou por vingança. [risos] Eu fui por vingança, mas fiquei por amor. Não consegui me vingar. Vingar do quê? Fui aluno de escola pública, excluído e humilhado. Jurei que nenhum aluno meu passaria pelo mesmo. E não conseguia isso. Não entendia como é que eu dava aulas tão bem dadas e eles não aprendiam. Até que na Escola da Ponte me pediram para ficar com a “Turma do Lixo”. Era assim que chamavam alunos de 14-15 anos que batiam nas professoras a ponto de elas irem parar no hospital.

Entrei na sala e perguntei quem sabia ler. Riram. E como a professora tentava lhes ensinar. Disseram que lhes mostrava o “a” de água, o “e” de égua, o “i” de ilha, o ”o” de ovos e o “u” de uva. Que faziam ondinhas do mar com os “ês”. Pus a mão na cabeça e pensei “Zé Pacheco, tu ensinas assim”. [risos] Por isso é que não aprendem.” Foi o primeiro grande clarão.



E o que aconteceu depois?
Descobri que aqueles jovens sabiam ler, mas não sabiam que sabiam. Explico. Eles não tinham dificuldade de aprendizagem. Eu é que tinha dificuldade de ensinagem, porque só sabia ensinar de uma maneira. Um episódio que vivi no Brasil serve para ilustrar.


Visitei uma escola e me colocaram numa salinha com alunos que, dizia-se, não sabiam ler e escrever. Disse-lhes: “Vou mostrar-lhes uns papéis e, se alguém souber ler, levante o braço. Peguei o primeiro papel. Todos leram “Coca-Cola”, depois “Big Brother”, “McDonald’s” e “Toyota” – em japonês. [risos] Disse aos professores: “Estão a ver? Eles sabem ler.”


Na Ponte, foi muito semelhante. Constituímos uma equipe de alfabetização e nenhum aluno deixou de aprender a ler porque demos a cada um o que precisava. A equipe teve de aprender metodologias diferentes. Hoje recebemos inclusive jovens com síndrome de Down e paralisia cerebral. É simples.


Em que você já fracassou como educador?
Quando me perguntam qual é o maior problema, digo que sou eu. Combato-me todos os dias. Meu maior defeito é minha herança educacional, minha tendência em aplicar as experiências que deram certo. Quando vou a uma escola e me perguntam – “o que devemos fazer para melhorar a escola?” – vem-me o monstro da arrogância. Resta-me descobrir junto com os outros. Os outros é que me salvam da “síndrome da Gabriela”: “Eu nasci assim, vou ser sempre assim...” [risos]

Você tem andado por mais de 100 escolas brasileiras. Algo lhe incomoda?
Não quero generalizar, mas as escolas brasileiras seguem uma lógica administrativa e burocrática. Onde a pedagogia não tem lugar, o professor é maltratado. [aplausos]


Como é o Zé diante dos professores?
Pergunto se estão dispostos a recomeçar. Se estão, recomendo que leiam os pilares da Unesco. Eles descobrem que o “aprender a conhecer” não acontece, pois há 14 milhões de analfabetos funcionais. Leem o “aprender a fazer”, o “aprender a ser”, o “apren­­der a conviver”, mas lembram que professores são assassinados, que há o bullying e xingamento nas escolas.

Depois oferecemos a eles, caso queiram, os grandes pilares da Ponte: tem o “recomeçar” e o “aprender a desaparecer”. [risos] Se o professor não é autônomo como pode ensinar autonomia? Professor não ensina aquilo que diz. Professor transmite aquilo que é. [aplausos]


Temos também de “aprender a desaprender”. Um aluno me perguntava: “Professor, um ser vivo é aquele que nasce, cresce, reproduz-se e morre?” Era o que lhe ensinava o livro didático. Se era assim, ele não se via como um ser vivo. “Não me reproduzi nem morri”, disse-me. [risos]


A última dica é “aprender a desobedecer”. A maioria das leis da educação está errada e contribui para o analfabetismo e para a infelicidade.


Pode dar um exemplo?
Um dia, escutei no rádio: “Pais das crianças que completem 6 anos até o dia 31 de março deverão dirigir-se à escola mais próxima, para matrícula”. Eu, português que pensa devagar, mas pensa, demorei dez minutos, mas imaginei uma gestante, seis anos antes, a jantar no dia 31 de março. Sente as dores e faz força para ter o filho até meia-noite. E não é que o mocinho nasce no dia 1.º de abril? A mãe acabou de condenar o filho a esperar um ano para entrar na escola. Perguntei-me: “Quem foi o jegue que fez esta lei?” [risos e aplausos]

Uma ocasião, eu estava a falar sobre isso, perguntei do jegue e o jegue estava lá. [risos] A lei está respaldada no Conselho Nacional de Educação. Mas não respeito essa lei. Não há uma idade para entrar na escola. Se uma criança pode ler aos 4 anos, por que não aprende aos 4 anos? Por que uma criança que aos 6 anos não tem condições de ler tem de estar naquela turma? Gerações sucessivas estão sendo “analfabetizadas”. Me deixa triste.

O que queria ser quando crescesse? E a quem você deve ser o que é?
Sei o que não gostaria de ser: não queria ser professor. Cursei Engenharia Elétrica e Mecânica. Mas um dia sem mais fui para professor. E há sim uma história à qual devo tudo. Certa vez, estava eu a falar com meu cunhado Paulo, muito mais novo que eu. Ele me disse que tivera um professor que fez dele o que era. E que houve uma professora que era uma cabra. [risos]


O tal professor, disse-me, “tirava-nos os piolhos, cuidava de nós, ensinava de outra maneira, tocava violão, jogava bola. Depois foi embora e veio a cabra. [risos] Só me faltava o retrato físico do tal homem. Paulo disse que era mais ou menos da minha altura, que tinha o cabelo pelas costas, barba, óculos à John Len­­non, vinha de jeans e sandália. Ficamos a olhar um para o outro. O professor de quem ele falava era eu.


Podemos fazer uma brincadeira? Dê nota de 1 a 10 para alguns dos itens da escola.
O quadro- negro e o giz: Zero [risos].
Me­­renda: 10.
Biblioteca: 10.
O portão: Zero.
A diretora: 10, porque sofre muito [risos].
O professor? 10 . Não, 11. [aplausos]


Como ser educador numa sociedade de violência?
O que se pode fazer? Tudo, menos o que vejo. Aumenta-se a vigilância, câmaras, castigo. Nada resolve. Nin­­guém nasce violento. Diz-se das águas dos rios que são violentas. Nada se diz das margens que a comprimem. É de Bertolt Brecht. Se mantivermos esse modelo, a violência de fora torna-se a violência simbólica da escola. Desculpem a arrogância, mas hierarquia não rima com pedagogia. Para conter a violência, teremos de mudar a organização da escola e responsabilizar a comunidade. É preciso uma tribo para educar uma criança.


Dê-nos uma pequena história para lembrar quando colocarmos a cabeça no travesseiro...
Vou lhes dar uma metáfora. “Estava o menino Nelson, subindo a ladeira da escola. Vinha todo sujo. Estava atrasado. Perguntei o que se passava. Disse-me que não conseguira dormir. Sua irmãzinha chorava: os ratos tinham lhe comido a orelha. Quis saber por que tinha então vindo naquele dia. Contou-me que sua vida era triste, mas que quando chegava a hora de vir para a escola, sentia algo cá dentro: “Professor, parece mesmo que o que sinto é alegria”.

Fonte: Gazeta do Povo/PR - José Carlos Fernandes, com colaboração de Fernanda Areno, Ana Gabriela Simões e Everton Renaud - Fotos de Alexandre Mazzo 30/10/2011 (http://www.gazetamaringa.com.br/online/conteudo.phtml?tl=1&id=1186508&tit=Pa-Pe-Pi-Po-Ponte#ancora)

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