Desde que o governo encaminhou à Câmara, em meados de julho, o PL 7.672/2010, visando a garantir que crianças sejam educadas e cuidadas sem o uso de “castigos corporais ou de tratamento cruel ou degradante”, tenho pensado em manifestar-me sobre a questão.Na segunda-feira, dia 26 de julho, fiquei me sentindo bastante obrigado a dizer alguma coisa depois que a Folha de S.Paulo divulgou, de um jeito enviesado, os resultados de uma pesquisa feita pelo Datafolha. A matéria mostrava claramente que apenas “54% dos brasileiros são contrários ao projeto de lei que veda castigos físicos em crianças”, isto é, uma apertada maioria. Mesmo assim, a manchete não hesitou em berrar que: “Maioria já deu, levou e é contra proibir palmadas”, fazendo parecer que a proposta não tem a menor legitimidade.
Mas fiquei incomodado não só com o destaque, dado a uma percentagem tão modesta – não estou nem descontando a margem de erro de três pontos. O que me incomodou mesmo foi a redução do debate à palmada, que é sinônimo de tapinha inofensivo que quase não dói. Como se no Brasil toda “violência educativa” (?) contra a criança estivesse restrita a batidinhas e a beliscões suaves. Antes fosse, ou melhor, antes não houvesse registros frequentes de surras e agressões com socos, pontapés, pauladas, chibatadas, cintadas, ferro em brasa etc.
A pior consequência da surra
Não sei exatamente por que acabei desistindo de me pronunciar. Acho que para não ter que admitir já ter batido nos meus filhos. Um pouco por vergonha, certamente. Contudo, ontem (03/08) mudei de ideia depois que minha esposa e mãe dos meninos me contou toda satisfeita – sem saber o que me preocupava – como o João Pedro, nosso filho de seis anos, havia reagido à ameaça de um amiguinho maior do que ele. Da janela e sem ser vista, a mãe ouviu o seguinte diálogo, enquanto observava quatro crianças brincarem no barro com panelas velhas e hominhos de plástico divididos igualmente entre seus dois filhos e dois amiguinhos.
“João Pedro, me dá seus hominhos senão eu te bato.” Sem hesitar, o João respondeu: “Se você me bater eu vou falar pra minha mãe, aí ela vai ligar pra sua que vai vir te buscar na hora.”
Mal piscou os olhos e os dois já estavam brincando juntos novamente.
Essa reação do João Pedro foi suficiente para que, finalmente, me sentisse desimpedido para falar. É que, no fundo, amargava há tempos uma dúvida em relação às consequências de ter batido nele (como confessei na postagem abaixo): será que ele teria aprendido que é certo apanhar quando alguém aparentemente mais forte afirma que ele errou?
Porque, para mim, a consequência mais perversa de se bater numa criança não é ensinar a ela que os problemas podem ser “resolvidos” (entre aspas, é claro) com violência. Embora a campanha “Não bata, eduque” tenha elegido essa consequência como argumento central (“uma consequência direta do uso do castigo físico é o aprendizado, por parte da criança, de que a violência é uma maneira plausível e aceitável de se solucionar conflitos e diferenças, principalmente quando você está em uma posição de vantagem frente ao outro, principalmente física” – trecho extraído do site), estou convencido de que o menor mal que podemos infligir a uma criança é transformá-la imediatamente em agressora (por ter supostamente assimilado a violência como um padrão para resolver problemas). Digo mais: tem muito pai-machão que não consegue conter a satisfação em saber que seu filho bate nos coleguinhas. Ainda assim, insisto que é preferível que a criança agredida reaja à agressão tentando imitar seu agressor do que permanecer inerte e submissa.
É preciso ser covarde para ser violento
Ou seja, acho muito mais grave e de difícil abordagem aqueles casos em que a criança não apenas sofre a violência como a naturaliza. Isto é, a criança subjugada se reconhece como uma “pessoa inferior”, se acovardando e se resignando diante das injustiças. A meu ver, é a mais violenta consequência da violência porque retiramos da criança a coragem, que é pré-requisito para o exercício da liberdade e da autonomia na vida adulta.
A coragem era considerada por Platão uma das três virtudes da alma. Não à toa, os três companheiros de Dorothy no filme O Mágico de Oz buscam inteligência, bondade e coragem. Como eu continuo achando que o filósofo grego está coberto de razão, vivo criando situações para que meus filhos se sintam inteligentes, corajosos e bondosos, ou melhor, se sintam bem sendo assim. Por isso, se alguém perguntar para o João Pedro e para o Antônio “quais são as três coisas que uma criança tem que ter?” (embora eu costume dizer, “um grande guerreiro”, ao invés de “criança”), verão os dois apontando para a cuca e dizendo “inteligência”, depois apontando para o muque e dizendo “força” e, então, apontando para o peito, responderão “bondade”.
Enfim, tem pai (e também mãe) que ainda não se deu conta de que ao bater em seu filho está no fundo fazendo com que ele aprenda a apanhar. Talvez acabemos por transmitir não um padrão de comportamento, mas dois: pois é preciso ser covarde para ser violento.
Pais que se habituam a bater e se acomodam
E não aceito o velho argumento de que existem crianças que só aprendem apanhando. Na melhor das hipóteses, a única coisa boa que as crianças aprendem quando apanham é que os adultos também perdem o controle e que não se pode confiar absolutamente nem em seus próprios pais.
É óbvio que diferentes crianças exigem, às vezes, formas diferentes de se educar. Mas de modo algum, porrada. Meu cunhado me contou que uma conhecida senhora catanduvense costumava se lamentar aos mais próximos dizendo que “embora tivesse criado seus dois filhos da mesma maneira, um lhe saiu vigário e outro, vigarista” (em tempos de pedofilia no clero, infelizmente, é preciso esclarecer que este último é que não prestava, pelo menos aos olhos da mãe). Não desejo aos meus filhos nenhum dos dois fins, tampouco um destino comum. Quero, sim, que ambos se identifiquem como gente por possuírem os mesmos valores fundamentais, como o respeito ao próximo e o amor à sabedoria, por exemplo. E se cada um aprende de um jeito, simplesmente porque são pessoas distintas. Meu desafio como pai é aplicar métodos e cuidados diferenciados de modo que eles se sintam igualmente amados.
Se pancada desse jeito em alguém, os meninos sairiam da Febem e da Funabem direto para a canonização (em caixões, naturalmente). Desafio quem conheça um só exemplo de uma criança reconhecidamente má que tenha endireitado à custa de castigos físicos, psicológicos e maus tratos. Por outro lado, sei de um monte de histórias de gente que apanhou horrores e que se tornou um agressor ainda pior ou covarde explosivo e imprevisível.
Conheço também inúmeras estórias. Mas vou mencionar apenas duas.
Primeiro, a estória do menino chamado Valtei que faz parte do livro-que-eu-mais-gosto, Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa. Vale a pena ouvir o que Riobaldo diz sobre ele:
“Eu gosto de matar…” – uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça – o voo já está pronto! Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e mastro – botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele de sangue, com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino já rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse, tossura da que puxa secos peitos. Arre, que agora, visível o Pindó e a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feito diversão [...]
Taí um risco e uma consequência que nem a campanha “Não bata, eduque” havia suscitado: dos pais que se habituam a bater e se acomodam.
A maldade de Romãozinho
A segunda estória, é Câmara Cascudo quem conta em seu livro Lendas brasileiras (com ilustrações de Poty, que também ilustrou livros de Guimarães Rosa). É a lenda de “Romãozinho”, que não tem nada a ver comigo e muito menos com meus filhos. Juro.Filho de negro trabalhador, Romãozinho nasceu vadio e malcriado. Tinha todos os dentes, fisionomia fechada, hábitos errantes, nenhuma bondade no coração. Divertimento era maltratar os animais e destruir plantas. Menino absolutamente perverso.
Um meio-dia, a mãe mandou-o levar o almoço ao pai que trabalhava num roçado distante da casa. Romãozinho foi, de má vontade. No meio do caminho, parou, abriu a cesta, comeu a galinha inteira, juntou os ossos, recolocou-os na toalhinha e foi entregar ao pai.Quando o velho deparou com ossos em vez de comida, perguntou que brincadeira sem graça era aquela. Romãozinho, entendeu vingar-se da mãe, que ficara fiando algodão no alpendre da casinha:
“É o que me deram… Minha mãe comeu a galinha com um homem que aparece lá quando o senhor não está por perto. Pegaram os ossos e disseram que trouxesse. Eu trouxe. É isso aí…
O negro meteu a enxada na terra, largou o serviço e veio correndo. Encontrou o mulher fiando, curvada, absorvida na tarefa. Dando crédito ao que lhe dissera o filho, puxou a faca e matou-a. Morrendo, a velha amaldiçoou o filho que estava rindo:
“Não morrerás nunca. Não conhecerás céu, nem o inferno, nem o descanso enquanto o mundo for mundo… O marido morreu de arrependimento. Romãozinho desapareceu, rindo ainda. Será que Romãozinho poderia ser corrigido com uma boa sova?
Meninos podem ser treinados
Tenho certeza que não. Mas tampouco creio que teria efeito uma bela conversa. E esse me parece, digamos, o defeito do lado oposto. Os que não batem e rechaçam qualquer forma de castigo físico e tratamento degradante parecem nutrir uma crença ingênua e ao mesmo tempo adultizada no poder do diálogo com as crianças. Mais uma vez recorro à campanha a que, apesar de criticar seus argumentos, aderi com empolgação. Especificamente, estou me referindo às dicas disponíveis no site como estratégias de educação positiva.
Em regra, a campanha recomenda aos pais que eduquem seus filhos com diálogo. Seja para repreender e impor limites, ou para estimular e acentuar comportamentos desejados. Até aí, tudo bem, pois “em tese” não há como discordar de uma educação baseada no discurso, nas palavras. O único senão é que nos momentos difíceis e delicados – como uma birra no supermercado, um palavrão dirigido à vovó, um soco no coleguinha, um vaso quebrado depois da décima advertência e por aí vai –, isto é, na “vida real”, dificilmente há clima e espaço para uma conversa de joelhos com os olhos-nos-olhos de seu filho. Eu já tentei e continuo tentando, mas para conter um moleque de três e outro de seis anos em situações limites (são aquelas em que você pensa em bater) é preciso lançar mão de técnicas mais eficazes.
Por exemplo, para interromper uma carreira desabalada em direção à rua movimentada (e evitar o atropelamento do seu filho), é necessário usar em alto e bom som uma única palavra de comando que o faça parar como um cachorro obediente. A comparação não é involuntária porque para atingir esse grau de aderência à voz de comando pode-se treinar os meninos (até os sete anos, mais ou menos) com o auxílio de um adestrador de animais. Só depois que seus filhos estiverem respondendo a comandos vitais do tipo “desce daí”, “pare”, “volte”, “corra” e “durma” – este último eu não consegui incutir no mais velho, embora eu tenha usado aquele famoso manual de adestramento: “Nana nenê” – depois disso é que entra a psicologia (não o psicólogo).
Não é com vara e marmelo que se corrige
É sério; tirando só um pouquinho do excesso. Não dá para corrigir a criança ou educá-la tentando sempre lhe explicar cada ato ou cada pretensão que nos move. Às vezes, quando quero que o João Pedro pare de fazer algo que incomoda (como ficar pedindo sem cessar “papai, deixa eu faltar da aula hoje” a caminho da escola), eu desvio a atenção dele contando uma hestória (meio mentira e meio verdade) instigante sobre algum ponto do percurso que ele possa ver e focar: “João, você sabia que eu conheci um menino (que estudou comigo lá na sua escola) que pulou do alto daquele viaduto gigantesco ali? Foi assim: quando eu tinha a sua idade, teve uma grande enchente aqui na cidade…” Nunca deu errado e olha que eu não sou nenhum Pedro Bandeira.
Também acho que muitas vezes o silêncio é a melhor forma de comunicação, principalmente entre pais e filhos, isto é, entre homens. De vez em quando, estamos os três brincando de playmobil na sala e aí os dois começam a brigar pela espadinha flamejante ou pelo cavalo preto ou por qualquer outra coisinha. Dou um minuto, no máximo, e se eles não se entendem, me levanto dizendo que não quero brincar mais. Saio. Em instantes, estão os dois me pedindo pra voltar porque eles “são parceiros e não vão mais brigar” (agora que o João sabe ver as horas, eles têm resolvido a disputa da seguinte maneira: cada um fica dez minutos com a coisinha disputada).
Melhor do que o silêncio e as hitórias, são os carinhos. Esses, sim, sejam abraços ou afagos, dispensam qualquer palavra.Bom, acho que era isso que eu tinha pra dizer.
No mais, não sei se é relevante registrar ainda que apanhei quando criança e que não fiquei traumatizado (acho), como quase toda minha geração. No entanto, me parece burrice concluir a partir de exemplos como o meu – com mais de trinta anos – que uma palmadinha não faz mal ou que pode até fazer bem. De 1970 para cá, o mundo mudou bastante. E hoje, sobretudo graças à luta pelos direitos humanos, repudiamos um bocado de coisas que antes nos pareciam “normais”, tais como homem que bate em mulher; político que rouba, mas faz; cristão que sonega em paz; e gente que joga lixo no chão.
Os tempos são outros. Hoje em dia as crianças já nascem sujeitos de direitos, ainda que seus pais não queiram. Antigamente, as crianças eram apenas um objeto relativamente protegido pelo Direito. Os pais colocavam seus filhos no “Jardim da Infância” na expectativa de que essas sementes de gente, regadas com educação escolar, viriam a florescer como adultos capazes. Hoje há casos em que a sementinha já escolhe o jardim. Antes as crianças comiam apenas depois dos adultos; hoje, são servidas antes mesmo da refeição ir à mesa.
Quando a Constituição do Brasil diz que as crianças têm prioridade absoluta, ela tão somente expressa o entendimento que predomina em nossa sociedade. Ou não somos nós mesmos que vivemos afirmando que em primeiro lugar estão os nossos filhos?
Pode até ser que tenhamos exagerado na medida ao atribuir às nossas crianças a condição de super-sujeitos de direitos, sob a guarda da Constituição e do Estatuto da Criança e
do Adolescente. Tenho minhas dúvidas, mas pode ser.
Agora, aqui entre nós: não é com vara e marmelo que vamos corrigir isso, né?