A história da cultura e dos livros tem uma longa tradição, mas só há pouco tempo ela ampliou seu âmbito para compreender também a trajetória da leitura e da escrita como práticas sociais. Um dos responsáveis por isso é o francês Roger Chartier. "Ele fez uma revolução ao demonstrar que é possível estudar a humanidade pela evolução do escrito", diz Mary Del Priore, sócia honorária do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. "Se a história cultural sempre foi baseada em dados estatísticos ou sociológicos, Chartier a direcionou para as significações sociais dos textos."
Para o campo do ensino da leitura e da escrita, a obra do pesquisador traz grandes contribuições, na medida em que ilumina os diferentes interesses e usos que aproximam leitores, autores, missivistas, escribas etc. de gêneros e formatos de textos também variados. A atenção a essas questões contribuiu muito para dar apoio à base teórica dos trabalhos de educadores como as argentinas Emilia Ferreiro e Delia Lerner, em particular à noção de que a leitura implica uma elaboração de significados que não estão apenas nas palavras escritas, mas precisam ser construídos pelo leitor. Não por acaso, os primeiros estudos de Chartier - em parceria com o historiador francês Dominique Julia - foram sobre a história da Educação, com enfoque principal nas comunidades de estudantes e nas instituições. Essa reflexão levou Chartier a questionar o papel da circulação e apropriação dos textos.
Na história da leitura, Chartier enfatiza a distância entre o sentido atribuído pelo autor e por seus leitores. Para o historiador, o mesmo material escrito, encenado ou lido não tem significado coincidente para as diferentes pessoas que dele se apropriam. Uma só obra tem inúmeras possibilidades de interpretação, dependendo, entre outras coisas, do suporte, da época e da comunidade em que circula. "Chartier escolheu concentrar-se nos estudos das práticas culturais, sem postular a existência de uma 'cultura' geral", diz Mary Del Priore (leia mais no último quadro).
O historiador se detém em realidades as mais inesperadas e específicas em torno dos livros, da leitura e da escrita ao longo dos tempos. Vai das variações tipográficas às formas primitivas de comércio, das primeiras bibliotecas itinerantes às omissões, traduções e acréscimos sofridos por obras famosas - e dá especial atenção ao aspecto gestual da leitura.
Por isso, considera que a primeira grande revolução da história do livro foi o salto do rolo de papel para o códice, ou seja, o volume encadernado, com páginas e capítulos. Maior ainda, segundo ele, está sendo o salto para o suporte eletrônico, no qual é a mesma superfície (uma tela) que exibe todos os tipos de obra já escritos. Essa é, na opinião dele, a mais radical transformação na técnica de produção e reprodução de textos e na forma como são disponibilizados. As mudanças de relação entre o leitor e o material escrito determinadas pela tecnologia alteram também o próprio modo de significação - antes do códice, por exemplo, era impossível ler e escrever num mesmo momento porque as duas mãos estavam ocupadas em segurar e mover o rolo.
As formas de apresentação do texto interferem no sentido
"Chartier compreendeu que um texto não é uma simples abstração e que ele só existe graças à maneira como é transmitido", afirma Mary Del Priore. O pesquisador francês costuma combater a ideia do material escrito como um objeto fixo, impossível de ser modificado e alterado pelas pessoas que o utilizam e interagem com ele. As novas tecnologias lhe dão razão - a leitura na internet costuma ser descontínua e fragmentária, e o leitor raramente percebe o sentido do todo e da contiguidade, que, por exemplo, o simples manuseio de um jornal já gera.
Essa diferença fundamental, que torna a leitura dos livros mais profunda e duradoura, faz com que ele preveja a sobrevivência do formato impresso, apesar da disseminação dos meios eletrônicos. "O trabalho que fazemos como historiadores do livro é mostrar que o sentido de um texto depende também da forma material como ele se apresentou a seus leitores originais e por seu autor", diz Chartier. "Por meio dela, podemos compreender como e por que foi editado, a maneira como foi manuseado, lido e interpretado por aqueles de seu tempo." O suporte, portanto, influencia o sentido do texto construído pelo leitor.
Ele gosta de enfatizar duas outras mudanças importantes nos padrões predominantes de leitura. A primeira: feita em voz alta à frente de plateias, foi para a silenciosa na Idade Média. A segunda: da leitura intensiva para a extensiva, no século 18 - quando os hábitos de retorno sistemático às mesmas e poucas obras escolhidas como essenciais foram substituídos por uma relação mais informativa e ampla com o material escrito.
Os caminhos de Chartier Por uma história cultural dos indivíduos
Roger Chartier pertence à geração de historiadores que rompeu, nos anos 1980, com a tradição hegemônica francesa, constituída desde 1929 por nomes como March Bloch (1886-1944) em torno da revista Annales d'Histoire Économique et Sociale. Mesmo assim, ele concorda com postulados básicos dos antecessores, como a multiplicação das fontes de pesquisa. Para ele, o trabalho com fontes primárias é fundamental.Por outro lado, sua trajetória se forjou sob o impacto da obra do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), que, segundo Mary Del Priore, "recusa uma história 'global'". Nasceu assim a Nova História Cultural, que se preocupa com a singularidade dos objetos. "Para Chartier, o movimento representa o estudo não das continuidades, como para a primeira geração dos Annales, que analisava os fenômenos em sua longa duração, mas das diferenças e descontinuidades", explica ela.
Biografia
Intelectual de grande influência no Brasil Roger Chartier nasceu em 1945, em Lyon, a terceira cidade da França, filho de uma família operária. Formou-se professor e historiador simultaneamente pela Escola Normal Superior de Saint Cloud, nos arredores de Paris, e pela Universidade Sorbonne, na capital francesa. Em 1978, tornou-se mestre conferencista da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e, depois, diretor de pesquisas da instituição. Em 2006, foi nomeado professor-titular de Escrita e Cultura da Europa Moderna do Collège de France. É membro do Centro de Estudos Europeus da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e recebeu o título de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras do governo francês. Também leciona na Universidade da Pensilvânia, nos EUA, e viaja pelo mundo proferindo palestras. Veio várias vezes ao Brasil, onde é, depois do antropólogo Claude Lévi Strauss, o intelectual francês contemporâneo que mais influencia estudantes de ciências humanas.
Quer saber mais?
- Formas e Sentido – Cultura Escrita: Entre Distinção e Apropriação, Roger Chartier, 168 págs., Ed. Mercado de Letras, tel. (19) 3241-7514, 24 reais
- Inscrever & Apagar, Roger Chartier, 336 págs., Ed. Unesp, tel. (11) 3242-7171, 37 reais
- Leituras e Leitores na França do Antigo Regime, Roger Chartier, 395 págs., Ed. Unesp, 46 reais
- Práticas da Leitura, Roger Chartier, 268 págs., Ed. Estação Liberdade, tel. (11) 3661-2881 (edição esgotada)
Fonte: Revista Nova Escola/ Texto: Márcio Ferrari