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terça-feira, 16 de julho de 2013

‘O cinema jamais foi, é ou será mero entretenimento’


Por Marcus Tavares
Na área dos estudos de cinema e educação, Marília Franco é referência. Professora Assistente do Departamento de Cinema, Rádio e TV da Escola de Comunicações e Artes da USP, Franco, há mais de 40 anos, defende o lugar ‘valioso’ que o cinema tem na constituição de conhecimentos e valores dos cidadãos. É dela a seguinte frase: “O cinema jamais foi, é ou será mero entretenimento”.

No intervalo da 8ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, realizado em junho deste ano, Marília Franco, pesquisadora e especialista em linguagens audiovisuais e educação, conversou com a revistapontocom. Falou sobre o mundo contemporâneo, o papel do audiovisual e da escola nos dias de hoje.

Acompanhe:

revistapontocom – Qual é o lugar que o cinema ocupa nos dias de hoje?
Marília Franco –
 Acho que o lugar do cinema mudou completamente nos últimos 40 anos, quando eu comecei a trabalhar na área de cinema e educação. Houve uma mudança radical em todo o sistema de comunicação audiovisual no mundo. Hoje as gerações já nascem informatizadas. Não temos mais um espectador, mas, sim, um usuário de mídia que interage imediatamente, tanto repassando quanto comentando qualquer tipo de informação, nem que seja no Twitter ou no Facebook. Ou seja: houve uma grande mudança no ato de espectar. 


Mas como sempre digo: o cinema jamais foi, é ou será mero entretenimento.  Quando me formei em cinema e comecei a trabalhar, cunhei uma frase dizendo: qualquer filme é educativo. Fui duramente criticada. Mas até hoje acredito nisto. Naquela época, precisava qualificar teoricamente o que dizia. Foi o que fiz ao longo desses anos e hoje reafirmo: o que é educativo não é o filme, o cinema. Educativo é o momento de conexão entre o espectador e o filme. O que pode resultar dessa interação vai depender do estado do espectador, do momento psicológico e emocional em que ele está. Pode ser uma descoberta de si, da vida ou do meio social. É isso que é educativo, aliás, transformador. Isso, na verdade, vale para qualquer outra linguagem artística.  

A única certeza que você tem é que você sofre um processo de transformação em maior ou menor grau. Um filme é sempre novo. Ele é renovado a cada novo acontecimento de espectar, até mesmo para aqueles que criaram a obra. A alma do homem e da sociedade são revisitadas e reinterpretadas em cada exibição, mesmo que haja apenas um espectador solitário num quarto anônimo de hotel. As grandes e eternas obras cinematográficas, quanto mais antigas possam ser ou futuristas pareçam, tem um tom de obra filosófica audiovisual, pois nos dão estímulo para pensar e compreender o passado e o futuro.

revistapontocom –  Neste sentido, pode-se dizer que a escola já trabalha nesta direção?
Marília Franco –
 O cinema, assim como as demais linguagens artísticas, vem se colocando na escola. O problema é quando se tenta disciplinar a entrada dessas linguagens na escola, tornando-as parte de uma linha de montagem.  A escola não modificou seus métodos de ensino. Ela ainda pensa no ensino e não na aprendizagem. Temos uma grade curricular, que é, literalmente, uma grade que aprisiona o aluno. Além disso, a instituição escolar tem uma metodologia de avaliação que não está preparada para o diferente. Uso sempre um exemplo: será que o professor de história de Cecília Meireles aprovaria o conhecimento dela sobre os inconfidentes lendo o Romanceiro da Inconfidência ou respondendo às perguntas da prova? A escola está muito mais preparada para aceitar que a Cecília Meireles coloque o conhecimento e a sensibilidade dela nas respostas da prova do que qualquer outra coisa. 

Neste sentido, ainda há escolas formais que desdenham do que eu chamo de educação sensível, através das linguagens das artes. Um contrassenso, pois quando se oferece, na escola, a oportunidade dos alunos experimentarem as expressões sensíveis/estéticas, uma outra forma de se estabelecer o contato entre o ser humano e o mundo, se propicia um grande momento revelador para o aluno.  A escola, principalmente para os adolescentes, se modifica. É recorrente como o conjunto de alunos rotulados de indisciplinados ou negligentes muda de atitude. Os grupos passam a perceber (ou a sentir) a escola de outra forma.

revistapontocom –  Os estudantes, por meio das artes, percebem um novo mundo?
Marília Franco –
 Sim. Perceba: quase todas as expressões artísticas são coletivas. E, neste momento, os jovens se dão conta de que precisam se organizar hierarquicamente a partir da necessidade da produção. Não se trata de uma hierarquia imposta por uma estrutura de fora da dinâmica do grupo. Eles descobrem isso de dentro para fora. Isto surge, na verdade, de forma intuitiva. E a intuição não é algo ingênuo, primário, de primeira instância. O intuitivo tem muitos níveis. A estrutura daquilo que você imaginou, produziu, elaborou pode ser chamado de intuitivo,  mas é altamente constituído de conhecimento. 


Digo isso, pois cada pessoa – cada estudante – tem um desenvolvimento cognitivo particular, como uma impressão digital. Cada um tem um caminho absolutamente único. A escola massificada, moderna, baseada na linha de montagem, não privilegia isso. Ela tenta formar de maneira homogênea diferentes pessoas. Quando você introduz as linguagens estéticas e oferece essa possibilidade de contato e redescoberta, os alunos se redimensionam como seres humanos.

revistapontocom – Esse discurso do poder das linguagens artísticas não é novo. A academia vem discutindo isso há algum tempo. Por que esse debate não chega à escola?
Marília Franco –
 Parte da academia vem discutindo isso, você quer dizer. Chega à escola por meio dos professores. São eles que estão fazendo e trazendo a inovação, não é a escola como instituição. Ela ainda é opressiva. Quem faz a escola é a burocracia da secretaria de educação. É preciso que essa escola institucional entenda que já saímos de um paradigma de um uso do conhecimento, na base da acumulação e repetição, uma característica da indústria de linha de montagem. Hoje você não tem mais que acumular certos dados. Pois muitos estão ao alcance da ponta do dedo. Você precisa entender conceitualmente as coisas. Quando precisar delas, basta consultar na web. O paradigma acumular/repetir está sendo substituído pelo de selecionar/ articular. 


No mundo contemporâneo é preciso que você saiba selecionar, num universo gigantesco de conhecimento que tem na ponta do dedo, qual é a informação que você precisa para desenvolver seu raciocínio. E mais do que isso: saber como articular essa informação com as demandas que estão sendo solicitadas a você. Há uma mudança radical de postura diante do conhecimento e do uso do conhecimento. A escola vem se adaptando muito lentamente a este novo paradigma.  Ainda está no mundo moderno e não no contemporâneo. Só que as novas gerações operam no mundo contemporâneo. 

O meu neto não tem nem quatro anos e tem o tablet como quintal. Isso vem chegando à escola, como disse, por meio dos professores e, lógico, dos estudantes. Mas precisamos compreender que se trata de um processo histórico.  As duas instituições sociais que mais demoram a se modificar são a Justiça e a Educação. Elas precisam absorver profundamente as mudanças da sociedade para organizar essa mudança em leis e métodos de transmissão/troca de conhecimento. Recorrendo ao fazer audiovisual, a transformação não se dará por meio de um corte seco, não acontecerá da noite para o dia. Ela vem se dando como uma fusão.

revistapontocom – Enquanto esta fusão não acontece…
Marília Franco –
 Os professores vão tentando ter jogo de cintura para driblar a burocracia das secretarias de educação e os jovens vem ganhando, cada vez mais, voz e vez no mundo fora dos muros da escola. A voz das crianças e dos jovens pode ser uma voz protagonista no mundo contemporâneo. Na escola é uma voz calada. O aluno tem que sentar, ficar quieto e ouvir o professor. Ele tem poucas oportunidades de emitir o seu pensamento. E quando é permitido, deve fazer não em voz alta, mas de preferência por meio da escrita e em português correto. Se ele resolver escrever um rap na prova, a escola, como um todo, não vai aprovar. Ela ainda não está preparada para lidar com isso. Os professores estão. Alguns vão aceitar o rap e darão uma boa nota, mas a escola… É melhor ela não tomar conhecimento. 


Fico surpresa que a escola dos dias de hoje, por exemplo, ainda não fale sobre o aparelho cognitivo do aluno. Quando falo sobre isso com meus alunos, há um certo espanto. Pergunto sempre a eles: “O conhecimento funciona onde? Na alma? Na estratosfera? Do pescoço para cima?”. Explico então que a construção do conhecimento tem um fundamento fisiológico. Temos um aparelho cognitivo que opera a construção do conhecimento dentro do nosso corpo.  Por que é recomendado ministrar aula de Matemática no início do período das aulas? Porque é o momento em que o fluxo cerebral está mais alerta, está mais propenso à racionalidade da Matemática.  Se começarmos a dar nomes aos bois e a observar como as coisas funcionam, vamos descobrir que o mundo, fora dos sentidos, não existe para ninguém. Só reconhecemos o mundo a partir daquilo que vemos,  ouvimos, cheiramos e sentimos o gosto. Os sentidos são a matriz  fisiológica da construção do conhecimento. Então temos que começar a integrar esse fundamento para a construção de  Projetos político- pedagógicos.

revistapontocom – No século XXI, precisamos da escola?
Marília Franco –
 A escola formal sempre terá um lugar importante na sociedade. O que é necessário entender é que ela não é nem pode ser um quartel. Tem que ser uma casa em que o conhecimento esteja abrigado, onde se proporcione ao individuo uma disciplina, uma concentração, um silêncio, permitindo que ele se volte para dentro de si e desenvolva, antes de tudo, o autoconhecimento. 


Fonte: RevistaPontoCom (http://www.revistapontocom.org.br/entrevistas/o-cinema-jamais-foi-e-ou-sera-mero-entretenimento)

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